Viúvas de uma farda

Tenho ido acesas discussões acerca deste tema, e como hoje muito se tem falado do MC SNAKE, e como filha de dois polícias que sou este assunto toca me especialmente, acho que é bom lembrar o outro lado que nunca ninguém “vê”.
Lembrando apenas alguns casos, infelizmente MUITOS outros ficam por referir.
CASO 1
Ana Gil levantou-se cedo, mas com o coração frio e manchado de negro. O filho foi morto há menos de uma semana numa rua estreita de um bairro que ela nunca viu, a centenas de quilómetros da pacatez do seu mundo. Ireneu Dinis tinha 33 anos e uma farda azul da PSP vestida quando a morte o apanhou, às cinco da madrugada, numa curva escura e fatal da Cova da Moura.
“O quarto do meu Ireneu está como sempre esteve.” Ou quase. Fátima tirou todas as fotografias do irmão. As imagens desapareceram, mas o polícia assassinado nunca mais será esquecido em Soeira, a pequena aldeia de Vinhais, não muito longe de Bragança. “Não é fácil aceitar a morte de um filho da terra. Ainda para mais nas condições brutais em que sucumbiu”, lamenta uma habitante.
Foram quase três dezenas de disparos, de caçadeira e armas automáticas. O jipe da PSP de Alfragide estava em missão de patrulha na Cova da Moura, um dos bairros mais problemáticos da zona da Amadora. Às cinco da manhã, ao fazer uma curva, o condutor é obrigado a recuar. Mas o brilho das luzes brancas da marcha-atrás significou algo mais na escuridão da noite. De acordo com fontes de PSP, contactadas pela DM, “alguém se terá sentido ameaçado e abriu fogo”. Alguém que continua a monte.
Ireneu ia sentado ao lado do condutor. Surpreendido, permaneceu sentado quando começaram os disparos. O seu corpo ferido já estava tombado quando o colega arrancou a toda a velocidade para fora do bairro. Morreu no Hospital Amadora-Sintra, ao início da manhã de quinta-feira, dia 17 de Fevereiro, depois de várias tentativas de reanimação.
A notícia da sua morte – que um elemento da PSP de Bragança levou à casa da família – saltou para os noticiários da televisão, encheu as páginas dos jornais e fez aquecer os ânimos na Polícia. Os sindicatos apelaram à entrega de armas e denunciaram a falta de condições com que os agentes trabalham nas zonas mais difíceis. O funeral realizou-se no sábado seguinte, no cemitério da aldeia. Que foi pequeno para tanta gente.
A aldeia olha preocupada para esta viúva. Ana Gil recebe uma pensão mensal de 102 euros, por morte do marido, mas paga 125 euros para a Segurança Social pela sua reforma.
Ireneu, o polícia que ajudava a equilibrar o orçamento, sonhava com o regresso a casa. Estava há onze anos na Amadora, com transferência pedida para mais perto da família. Tinha outro sonho. Paula, a empregada das piscinas de Vinhais que conhecia desde sempre e com quem namorava há três anos.
CASO2
Quando pára junto à campa do marido, Mónica diz ao filho que o pai também está no Céu. Felisberto Silva, o rapaz da Cova da Moura que vestia a farda da PSP, tinha 25 anos quando seis tiros à queima-roupa, numa avenida da Damaia, o roubaram para sempre à família. “Nunca mais vou conseguir esquecer o que se passou”, conta a mulher que ficou viúva na tarde de 4 de Fevereiro de 2002.
Mónica, que tem hoje 25 anos,conhecera Felisberto na escola secundária da Damaia. “Ele vivia para a farda. Tinha o maior orgulho em ser da Polícia e adorava o trabalho.”
Na tarde em que foi morto, Felisberto Oliveira da Silva encontrava-se de serviço na zona da Damaia quando se apercebeu de que três veículos tinham chocado na Avenida D. João V e dirigiu-se de imediato para o local. Foi então que de uma das viaturas – um Renault Clio cinzento – saíram dois homens que se puseram em fuga, cada um para seu lado.
Um deles dirigiu-se para a estação da CP da Damaia, conseguindo apanhar um comboio. No momento em que o agente se preparava para imobilizar o outro suspeito, que fugia em direcção à Cova da Moura, o indivíduo empunhou uma arma de fogo e atingiu-o mortalmente com seis tiros disparados à queima-roupa, pondo-se novamente em fuga, afastando os curiosos com disparos efectuados para o ar.
Pedro Furtado, mais conhecido por ‘Pepa’, de 34 anos, era o homem que segurava a arma. Hoje, cumpre uma pena de 18 anos de cadeia em Cabo Verde, onde foi detido depois de fugir de Portugal. Dezoito anos é pouco, muito pouco. Um polícia tem de trabalhar 32 anos para se reformar”, diz Mónica, que nos últimos dias foi obrigada a reviver a morte do marido.
Iuri ainda não sabe o que sucedeu ao pai. “Quando vamos ao cemitério eu digo-lhe que ele está no Céu.” Sobre o homem que lhe roubou o marido, Mónica continua à procura de uma palavra para os seus sentimentos. “Raiva? Não sei se é isso que sinto…”
CASO3
No fim de tarde de 10 de Novembro de 2003 começou um pesadelo que está longe de ter terminado.
O subchefe da PSP Armando Lopes viria a morrer no Hospital Distrital de Faro, não sobrevivendo às múltiplas fracturas ocasionadas pelo atropelamento de uma viatura, conduzida por um alemão e que transportava dois portugueses, em fuga desde Lagos. O carro só parou ao fim de 150 quilómetros, depois de uma louca correria pela Via do Infante, numa barragem policial montada na ponte. No dia 9 de Março, os três arguidos acusados de homicídio qualificado pela morte de Armando Lopes vão conhecer a sentença.
“Ainda hoje custa a acreditar que o meu marido morreu de uma forma tão cruel.”, conta Adelaide Lopes.
Está sozinha, viúva, com dois filhos: Tiago, de 13 anos, e Joana, de 10 anos. E com a memória de um casamento. “Começámos a namorar aos 16 anos, na escola que frequentámos juntos até ao 12º ano”, afirma a viúva inconsolável.
Vila Real de Santo António parou para o maior funeral que se realizou na cidade. No caixão ia o corpo de Armando Lopes, o menino que aprendeu a andar no quartel dos bombeiros, o militar que foi o primeiro na recruta em Tancos e no curso de admissão à PSP, o polícia que foi atropelado na Ponte do Guadiana. Tinha 38 anos.
CASO 4
Impulsionados pelo espírito de missão, os jovens militares da GNR, Francisco e Sérgio, deixaram para trás o dia de folga que estavam a gozar, foram ao quartel buscar as armas e avançaram decididos. Mal sabiam que estavam a cair numa emboscada, que lhes custou a vida. Os dois camaradas e amigos foram assassinados à queima-roupa com vários tiros de caçadeira, em Setembro do ano passado, em Freixo de Numão, Vila Nova de Foz Côa.
O som dos disparos ainda ecoa alto nestas terras junto à fronteira, onde duas famílias feridas de morte choram a alegria que nunca mais vão recuperar. Na casa dos Inês, a vida perdeu parte do sentido com a morte de Francisco, o militar da GNR que, aos 24 anos, sucumbiu no cumprimento da sua missão.
CASO5
Os dois homens que respondem pela morte de Francisco – um indivíduo que estaria a provocar desacatos durante as festas de Freixo de Numão e o seu pai – são também acusados do homicídio de Sérgio Russo, o segundo militar da GNR que, na noite de 5 de Setembro do ano passado, esqueceu a folga para morrer em cumprimento da missão. Tinha 27 anos e era natural da aldeia de Cortes do Meio.
Passado quase meio ano sobre o acontecimento, os pais de Sérgio Russo continuam na aldeia e vivem ainda o drama de ficarem sem o filho. ” A nossa família foi destroçada pelas mãos de um assassino que merecia a pena de morte”, desabafa Jaime Russo, pai da vítima.
CASO6
Quando Arminda relembra, passo a passo, o dia 10 de Janeiro de 2003 – a despedida do marido quando saiu para o serviço ou as ambulâncias que ouviu passar quando ainda estava deitada e às quais não atribuiu importância.
António Teixeira Rodrigues tinha 44 anos e estava na GNR há mais de duas décadas. Foi atropelado em serviço quando respondia à ocorrência de um despiste na Nacional 109 e procedia à sinalização da via.
A revolta que ficou é tão grande como a saudade que sentimos”, aponta, com os olhos rasos de lágrimas.
“Qualquer mulher que se case com um polícia sabe que uma coisa destas pode acontecer a qualquer momento. Mas não podemos deixar de nos revoltar, porque eles são mortos e feridos e nem sequer se podem defender. O meu marido não foi baleado, mas é como se tivesse sido. Foi morto de forma criminosa, quando estava a trabalhar em prol da comunidade e isso dói profundamente”.
CASO7
O ataque à patrulha da PSP na Cova da Moura, de que resultou a morte do agente Ireneu Dinis, da esquadra de Alfragide, colocou, uma vez mais na agenda pública o problema da intervenção policial nos bairros mais problemáticos da periferia de Lisboa. Os sindicatos pediram mais agentes, melhores meios, como coletes à prova de bala e viaturas com vidros protegidos, e a definição de modelos de policiamento devidamente enquadrados para o cumprimento da missão. Especialistas consultados pela Domingo Magazine vão mais longe e explicam que é a autoridade do Estado que está em causa.
“Depois do que aconteceu, era preciso fazer uma demonstração de força. Cercar o bairro, sem exageros, mas mostrar que a autoridade existe em todo o território. E isso não aconteceu”, defende José Barra da Costa. O antigo inspector da PJ e criminologista recusa a ideia de “zonas proibidas” para as autoridades. “A polícia entra sempre em qualquer local. Quando não chega um elemento, vão dez. Se não chegam dez, vão cem. Mas vão.”
O criminologista lembra ainda que apenas 3 por cento dos detidos por agressões a agentes da autoridade ficam em prisão preventiva. “Perante isto, qual é o polícia que tem vontade de prender seja quem for?” A pergunta fica no ar.


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